Lembro quando eu era criança, minha avó foi operada de catarata, foi um agito na família! Ela ficou internada e ao voltar para casa, permaneceu um longo tempo em absoluto repouso, sem poder se movimentar. Perguntei a ela porque precisava usar aqueles óculos “fundo de garrafa” mesmo após a cirurgia. Hoje sabemos que pelo fato de à época não ser implantada lente intraocular no lugar da catarata, as pessoas utilizavam óculos com graus bastante elevados para corrigir a ausência do cristalino. Foi o que ela me disse, em outras palavras… Foi meu primeiro contato com a oftalmologia.
Atualmente operamos pacientes que são liberados poucas horas após o procedimento, muitas vezes já estão com boa visão no dia seguinte, necessitando muito pouco grau de óculos para enxergar! Estas “facilidades” tornaram a cirurgia de catarata, um dos procedimentos cirúrgicos mais realizados no mundo, beneficiando e trazendo “vida” a milhares de pessoas.
Por outro lado, temos observado um explosivo aumento das indicações cirúrgicas, mesmo em indivíduos com cataratas insignificantes, com boa acuidade visual e que pouco influenciam as atividades diárias destas pessoas. Há cerca de um mês, atendi um senhor muito ativo de 84 anos, que foi trocar seus óculos em outro serviço, e veio com indicação para operar sua catarata. Após conversar bastante e examiná-lo, observei que realmente apresentava catarata relativamente densa, cuja visão melhorou bastante após eu ajustar seu grau dos óculos (lembrando que as cataratas nucleares que são comuns, frequentemente mudam muito a refração dos pacientes). Disse a ele que apresentava catarata, mas poderíamos tentar não operá-lo, pois sua visão melhorou muito após corrigirmos os óculos. Esta semana me ligou, agradeceu muito por ter dado a ele a opção de não fazer a cirurgia e que voltou a dirigir com confiança. Esta situação é muito comum nos dias atuais.
Alguns grupos advogam a indicação de cirurgia nestes pacientes pelo fato de ficarem menos dependentes de óculos, a cirurgia ser “simples” e com rápida recuperação.
Mesmo com o avanço tecnológico, as chances de complicações em uma cirurgia de catarata são reais e não desprezíveis, especialmente quando lidamos com a visão que é a maior fonte de comunicação com o mundo.
Recentemente o Royal College of Ophthalmology, publicou um importante estudo que analisou cerca de 200.000 cirurgias de catarata realizadas no Reino Unido. O número total de complicações intraoperatórias foi de 4,2% e a porcentagem de complicações nas mãos de cirurgiões experientes foi 3,5%. A ruptura de cápsula posterior, que é uma complicação muito temida entre nós cirurgiões, ocorreu em cerca de 2% das cirurgias e estes pacientes tiveram 42 vezes mais chances de apresentar descolamento de retina e 8 vezes mais chances de endoftalmite no período pós-operatório. Ambas complicações gravíssimas com chances de cegueira.
Além dos riscos inerentes ao procedimento, a cirurgia de catarata envolve custos diretos aos pacientes e familiares, aos sistemas de saúde (SUS, seguros saúde, etc) e em última instância à sociedade. Será que estamos dispostos a arcar com estes custos? Sou cirurgião e grande entusiasta da cirurgia de catarata mas acredito que deveríamos ser mais críticos em relação à indicação de procedimentos que poderíamos tentar evitar.
Entendo que a melhor forma de mudarmos atitudes e pensamentos que levam ao sobrediagnóstico (“overdiagnosis”) e ao sobretratamento (“overtreatment”) seja através da transparência.
Transparência no ensino de medicina / oftalmologia, orientando os futuros médicos utilizarem medicina baseada em evidências de qualidade, recorrendo às estatísticas para tomarem decisões mais científicas e menos intuitivas.
Transparência relacionada ao conflito de interesses comerciais na medicina.
Transparência com os pacientes, permitindo que as decisões médicas sejam compartilhadas e centradas em valores e crenças dos pacientes.
Transparência relacionada ao excesso de cobrança sobre os médicos/medicina que muitas vezes precisam lançar mão de exames e procedimentos para se defenderem de possíveis demandas.
Finalmente vejo que precisamos de TEMPO para ouvir e “sacar” o que realmente aflige nossos pacientes e encará-los como um todo, evitando compartimentalizar o atendimento, para poder por exemplo, responder com mais firmeza, uma pergunta muito realizada nos dias de hoje: “Doutor, eu realmente preciso operar minha catarata?”
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Emerson F. S. Castro, sou cirurgião oftalmologista com residência médica e doutorado pela USP, fui coordenador do pronto socorro de oftalmologia do Hospital das Clínicas da USP e participei da equipe de coordenação do setor de catarata do Hospital das Clínicas da USP.
Sou da equipe de pronto atendimento de oftalmologia do Hospital Sírio –Libanês e trabalho em consultório privado.
Artigo publicado em: Doutor, eu realmente preciso operar minha catarata? – Slow Medicine