Resumo
O exame de fundo de olho tem importância histórica e mantém sua relevância nos dias atuais, por possibilitar de maneira não invasiva, observar e avaliar o “interior” do corpo humano, além de ser um importante marcador de lesão de órgão-alvo em hipertensos.
O surgimento de tecnologias de aquisição de imagens digitais permitiu acessar o fundo de olho de maneira mais simples, com grande definição, muitas vezes não necessitando dilatação da pupila. Isso tornou a observação do fundo de olho, que outrora era realizada apenas por pessoas com treinamento especial, fosse feita com extrema facilidade e quase sem treinamento. Estas “facilidades” permitiram que inúmeros artigos científicos fossem realizados, estabelecendo características do fundo de olho como relevante marcador de lesão de órgão-alvo em hipertensos. A incorporação de tecnologias virtuais na prática da medicina facilitará o acesso dos pacientes, reduzirá custos e certamente irá revolucionar a relação médico-paciente nos próximos anos.
Introdução
A hipertensão arterial sistêmica (HAS) aumenta as chances de ocorrerem complicações cardiovasculares, cérebro vasculares, renais e retinianas. Tais complicações podem ser denominadas lesões de órgãos – alvo1. O desenvolvimento de lesões subclínicas como, hipertrofia do ventrículo esquerdo (HVE), aumento da espessura íntima/média dos grandes vasos, microalbuminúria com disfunção glomerular, déficits cognitivos e retinopatia hipertensiva, precedem a maioria das complicações, incluindo acidentes vasculares encefálicos (AVE), insuficiência cardíaca congestiva (ICC), infarto agudo do miocárdio (IAM), insuficiência renal e oclusões vasculares retinianas2,3. A retinopatia hipertensiva é conhecida como importante preditor de morbidade e mortalidade. Estudos epidemiológicos e clínicos evidenciam que marcadores de retinopatia hipertensiva são associados com aumento da pressão arterial, doenças vasculares sistêmicas, doenças cerebrovasculares e cardiovasculares subclínicas, além de predizerem AVE, ICC e mortalidade relacionada a complicações cardiovasculares. Além disso, tem sido demonstrada a associação entre retinopatia hipertensiva e outras lesões de órgãos-alvo, independentemente dos níveis da pressão arterial4.
Através do exame de fundo de olho pode-se determinar a presença e/ou gravidade dos sinais de retinopatia hipertensiva. Trata-se de um exame de peculiar, pois permite observação direta da microcirculação, uma “janela” natural do organismo. A despeito destas características, o valor do exame de fundo de olho tem sido questionado nas últimas décadas. A existência de inúmeras classificações que nem sempre têm aplicabilidade na prática clínica, a dificuldade em treinar profissionais para realizar o exame em grande escala, a alta variabilidade inter observadores5, tornaram
este exame pouco exequível e pouco reprodutível6.
Com o surgimento de sistemas simplificados de classificação da retinopatia hipertensiva7,8, com o advento de novas tecnologias permitindo a aquisição e tratamento de imagens digitais, tornou novamente interessante o estudo da microcirculação retiniana e especificamente da retinopatia hipertensiva.
Sinais de retinopatia hipertensiva
Os principais achados da retinopatia hipertensiva são a esclerose arteriolar, observada pelo aumento do reflexo arteriolar e pode adquirir o aspecto de fio de cobre e fio de prata; o cruzamento arteriolovenular; o estreitamento do calibre arteriolar em grau e extensão variáveis; os microaneurismas. As hemorragias retinianas e os exsudatos duros e algodonosos são manifestações visíveis de pequenos infartos retinianos . A presença de papiledema está associada a quadros de pressão arterial muito elevada (hipertensão maligna). Acrescenta-se a estes, a retificação e a tortuosidade arteriolar como sinais de retinopatia hipertensiva9. O reflexo luminoso dos vasos, mesmo tradicionalmente associado à arteriosclerose, é sensível às alterações da pressão arterial (PA)10, necessitando de uma reavaliação na sua interpretação e na sua utilidade para a classificação da retinopatia hipertensiva.
Classificação da retinopatia hipertensiva
A primeira classificação da retinopatia hipertensiva surgiu em 1939 com o trabalho de Keith, Wagener e Barker11. Ong et al8, classificaram a retinopatia hipertensiva em nenhuma, leve, moderada e grave, foi uma abordagem simplificada comparada às classificações históricas, mas muito útil aos clínicos (Tabela 1).
Tabela 1- Classificação da retinopatia hipertensiva segundo Keith, Wagener e Barker.
Grau: Sinais retinianos
Nenhum: Sinais não detectáveis.
Leve: Presença de estreitamento arteriolar generalizado, estreitamento arteriolar focal, cruzamentos arteriolovenosos ou combinação destes sinais.
Moderado: Presença de hemorragias superficiais ou profundas, microaneurismas, exsudatos algodonosos ou a combinação destes sinais.
Grave: Presença de sinais de retinopatia hipertensiva moderada e edema de disco óptico.
Fisiopatologia da retinopatia hipertensiva
Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na retinopatia hipertensiva ainda não são completamente conhecidos. Acredita-se que as alterações vasculares retinianas podem ocorrer em resposta à pressão arterial elevada com vasoconstrição intensa, degeneração da musculatura lisa com perda do suporte do endotélio, rotura da barreira endotelial, com passagem do plasma para dentro da parede do vaso, e necrose da mesma, com obliteração da luz do vaso (necrose fibrinoide). Em decorrência destas alterações vasculares, são observados os outros achados como exsudatos algodonosos, exsudatos duros, hemorragias retinianas e o papiledema12-13. Por outro lado, a elevação da pressão arterial isoladamente, não explica totalmente os achados da retinopatia hipertensiva14. Estudos recentes mostraram que o estresse oxidativo, inflamação, aumento da ativação plaquetária e disfunção endotelial podem estar envolvidos na patogênese da retinopatia hipertensiva15,16. Recentemente, Castro et al., observaram que não apenas a HAS mas também sua variabilidade pode induzir estresse oxidativo em retina de ratos17.
Importância do reconhecimento da retinopatia hipertensiva
A baixa sensibilidade das anormalidades retinianas associadas à HAS indica que a retinopatia hipertensiva não é comum em indivíduos hipertensos5. Menos da metade das alterações retinianas associadas à HAS, não são explicadas pelo aumento da pressão arterial (baixo valor preditivo positivo)5. Várias outras condições são associadas à retinopatia hipertensiva, como etnia18, tabagismo19, concentração de colesterol sérico20, diabetes, índice de massa corporal21. A alta especificidade indica que a retinopatia hipertensiva é rara em pacientes com pressão arterial normal5. Metade dos hipertensos não apresenta retinopatia hipertensiva (baixo valor preditivo negativo). Portanto o exame de fundo de olho não pode determinar se o paciente é hipertenso ou normotenso5.
Por outro lado, os sinais de retinopatia hipertensiva são reconhecidos como importantes indicadores de risco para HVE22,23 e doenças cardiovasculares24 De Leonardis et al25. sugeriram que a retinopatia hipertensiva é mais sensível que a HVE no reconhecimento da lesão de órgão-alvo da HAS. Além disso, a retinopatia hipertensiva é mais comum em pacientes com AVE e ataque isquêmico transitório26. Recentemente Ong et al8, demonstraram que a retinopatia hipertensiva é um preditor de AVE, independentemente dos níveis de pressão arterial, mesmo em pacientes hipertensos com bom controle pressórico. Trata-se de um achado surpreendente, que pode ser explicado por hipertensão mascarada, susceptibilidade individual de alguns hipertensos a doenças de pequenos vasos. Tal susceptibilidade pode incluir fatores estruturais que afetam a resistência arteriolar à pressão, como anormalidades do colágeno ou elastina27.
Como acessar o fundo de olho nos dias atuais? E no futuro?
Hoje reconhecemos a avaliação das características do fundo de olho como um importante marcador para lesões de órgãos-alvo. O grande problema, que deixou este exame esquecido por muito tempo, era sua difícil exequibilidade e baixa reprodutibilidade. Na década de 1990, surgiram os retinógrafos que facilitaram a visualização do fundo de olho. Atualmente existem equipamentos digitais, que permitem acessar o fundo de olho com muita precisão e eventualmente sem necessidade de dilatação pupilar (equipamentos não midriáticos). Outras tecnologias como a tomografia de coerência óptica (TCO) do fundo de olho permitem, por exemplo, avaliar neurodegeneração cerebral em mal de Alzheimer28 e correlacionar achados do fundo de olho (nervo óptico) em pacientes com compressão quiasmática29. A avaliação do segmento anterior dos olhos e retina, já pode ser realizada através de dispositivos móveis como telefones celulares e smartphones. Associado a “democratização” da captação de imagens, algoritmos estão sendo desenvolvidos para tornar cada vez mais reprodutível a análise das características do fundo de olho. A incorporação de tecnologias virtuais na prática da medicina facilitará o acesso dos pacientes, reduzirá custos e certamente irá revolucionar a relação médico-paciente nos próximos anos30.
Referências
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